terça-feira, 9 de dezembro de 2014

nicho





entre os achados, eu
com a orfandade cobrindo minha nuca
o medo encharcado de dentes.
à frente, o couro da morte é curtido no mormaço da espera.
colocar-me um acento, alguns pertences, algo a deixar
alinhar o mundo à pane da bússola de carne
deixar o sangue vazar pela borra
até coagular o passo adiante
deter a sequência de mãos
apagando as luzes.


fotografia e palavras     luciana marinho

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

linha do tiro





ela caminha na linha do tiro.
sete anos de pesadelos escoados pelo corpo.
ata o ar, com arame, aos fossos de seu vestido.

martelo de pele e cartilagem, 
o tempo a trai quando não a envelhece.

ao largo do sorvedouro, 
ela resta antiga.






fotografia     kamil vojnar
palavras     luciana marinho

sexta-feira, 18 de julho de 2014

outside






minha mão entre a porta, que quer fechar, e a parede.
pressionada em uma das saídas para o mundo.  
nada faz me perder mais do que demorar no chão.
olho o gato esquecido pelo dono e eu esquecida na vértebra arrancada.
o suspiro começa um pulmão de vísceras paginado no diário.
depois de eu nascer,
aquela água na garganta
sem respirar.
minha coluna se ergue
em um som paralisado:  
meu nome 
fora das bocas
omitido no batismo.



fotografia     francesca woodman
palavras     luciana marinho



domingo, 29 de junho de 2014

filigranas





o verbo devotado à água
escorre pelo olho morto
como treva que sai da palavra


fotografia   elena kalis
palavras   luciana marinho

sexta-feira, 4 de abril de 2014

água puída








somos cinco sob a árvore. alguns passantes vêem um sobrado, outros um forte, mas se trata de uma árvore secular. há ernesto, que nos atravessa com seu pavor no instante da partida, enquanto nós estamos cercados pela espera de sua volta. a contar por nosso calendário, ernesto só viverá novamente quando se cumprir mais uma quina de anos. a esse tempo, pisamos a terra calcinada e nossos ossos, junto às sementes, formam um nó cego no corpo. nada pode faltar a ernesto, como a nenhum filho. não podemos revelar que achamos esse princípio de igualdade injusto. nossa mãe, com hera nas mãos, sussurra que injustiça é a privação de ernesto. privação de nos ver sem ser visto, de nos tocar sem ser tocado, de ser o único a ouvir a própria voz ecoar terra afora chamando por nós. quanto oceano, mãe, ainda nos vestirá até o pescoço? nossa mãe diz, na hora da prece, que, por nossos passos, ernesto sentirá que há chão; por nossos olhos, verá o longe  para que ele não seja, noite e dia, o dia afogado em seus pés que não viram o rio sem fundo. ernesto é a última criança que correu para o rio. a nós restaram a água puída e o seu aquário. 






fotografias     b. berenika
palavras     luciana marinho

sexta-feira, 28 de março de 2014

00:00h







descobri que sei guardar segredo.
a água inunda os batimentos cardíacos. 
o olhar se esvai em cobre, potássio, cobalto
diminuto calendário das dores que, na descida, não é tempo, 
é brisa de água. 
a crosta de tudo que desdiz meu nome me reveste com um corpo
mais sonoro: eco de nenhum cão. 
sorvo-me  farpas, vidros, o pântano da primavera em meus pulmões secos.  

sei guardar segredos que matam.










fotografia    robert moses joyce
palavras     luciana marinho

domingo, 16 de março de 2014









a perder de vista:

deixava o desconhecido e o mar entrar pelo rasgão de seu nome

e a nuvem vagar-lhe 
enquanto se esquivava da onisciência de deus.





fotografia     sophie van der perre
palavras     luciana marinho

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

matéria bruta




no fundo das mãos há o ponto cego
em que ninguém pode tocar.
por onde passa a corda usada pelos presos
para a fuga.




posso começar pelo fosso.
pela sombra em que éramos a vertigem do pai.
a luz golpeada nos pés ao nascer.
ao nascer
e não estar na vida.




a água toma o fôlego restante dos dias.




fotografia     robert moses joyce
palavras     luciana marinho

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