domingo, 15 de dezembro de 2013

rota



de tudo haveria de ficar para nós um sentimento
longínquo de coisa esquecida na terra.

manoel de barros







a criança fala sobre o caminho de volta 
e as pedras inscritas no punho paterno. 
fala o quanto prefere os dias chuvosos
— ela e os bichos que descem ao chão, 
às pequenas poças. 
o mundo fica maiúsculo
e as palavras, velhos apêndices. 

ela paira entre seu corpo
e o quarto materno. 

também estava prestes a se deixar lavrar
por tanta vida. 

sabia, fora do pensamento, que não estava voltando. 
estava indo, como nunca antes, 
a não familiar casa da infância. 
onde outras crianças eram o sono 
e sua curvatura de lua. 




fotografia     b. berenika
palavras     luciana marinho

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013




lembra-se das folhas do outono?
dos dias anuviados? eu me lembro.
e se lembra quando você brincava com os cachorros no pátio 
de sua infância, enquanto nossa mãe cantarolava uma canção?
não se lembra? eu me lembro.
e se lembra  do dia em que havia um monte de gente,
rezando em torno de um féretro, enquanto nossa mãe chorava?
por acaso quem estava no caixão não era nosso pai, o seu e o meu? 
não se lembra? eu  me lembro.
lembro-me de tudo, desde o  primeiro momento em que saí 
do ventre de minha mãe  até o último momento em que morri.
lembra-se do dia de nossa morte? eu me lembro.
e agora estamos aqui entre todos esses mortos, esperando o juízo final, 
afastando os vermes para não devorarem nossa alma.
ainda conserva sua alma ou já a perdeu?

(fragmento de relato constante do livro 
O Inquilino do Imaginário)






não importam o esquecimento
os lugares envergados da infância
a paisagem que chega fria e espalhada no nada.
não importa o cálice aberto na boca à espera
de que o céu seja a humilde volta do dedo na borda cortante.

não há passos nas vozes.
nenhum som além do ruir da folhagem nas águas
e de pássaros na vagueza óssea do pensamento.
o suster extenuado das cinzas. 







fotografia     b. berenika
palavras     luciana marinho

domingo, 29 de setembro de 2013

reescrita II: na morada do Verbo





és os veios de meu nome
e a difícil obra de pronunciar o mundo. 
sopro, bálsamo, alianças do tempo ─ 
Palavra. 
pela tua boca sinto o meu gosto 
por terra e semente. 
na memória de teu pátio, 
o balanço na oliveira me leva, 
impregnando meus cabelos de céu. 
corro por tuas fronteiras 
imensamente deserto. 
és, no bruto fazer-se do mundo, 
incrustação na luz. 


fotografia     aëla labbé
palavras     luciana marinho

sábado, 7 de setembro de 2013

criptogramas de Arminda




o poente que não cicatriza
ainda fere a tarde.
as cores trêmulas se acolhem
nas entranhas das coisas.

jorge luis borges





ao norte, a mão de pedra sobre pedras.
ao sul, os pés feridos de Aquiles.
a sombra de meu corpo recai nos ombros de Arminda.
Arminda repete a cantiga das linhas do mar.
em suas preces, os que se foram ordenam nervos, bálsamos. o descampado.







a terra que ocupamos recua para a fronteira.
Arminda continua amamentando seus filhos e os dos outros.
um estranho chega à porta:
"desconhecerão teu sangue.
não terão os teus por irmão".
Arminda tem os sinais para descer à vida.







a voz de Arminda anda por muito longe à procura do barro junto à mão divina:
vim antes de todos para que nenhum animal fosse morto.
entre a unha e a carne há sinais da luta pela sobrevivência.
estrelas d'águas, moventes, corpos celestes,
povoados que me regressam 
pré-históricos
ao ocaso
ao vasto nevoeiro terrestre.







fotografias     sebastião salgado
palavras     luciana marinho

segunda-feira, 22 de julho de 2013

à margem do caminho

para lara amaral


pero porque pido silencio
no crean que voy a morirme
me pasa todo lo contrario
sucede que voy a vivirme.

pablo neruda




vieram de onde o tempo é aragem funda nos olhos.





trouxeram o despenhadeiro ao fim dos pés.
a luz os percorreu e pôs, em suas bocas, 
rios afundados em vozes, amuletos.





a terra sangrou os confins de seus corpos, 
suas mãos peregrinas dos sargaços de um vento.



fotografias     aëla labbé
palavras     luciana marinho



 ❃ 


à margem do caminho segue dedicado à lara amaral. é um gesto afetuoso, que retribui a alegria de ter recebido de lara um poema (link abaixo) que me fez me olhar com mais poesia. por ser um compartilhar de percepções, sensibilidades, de companhia neste mundo, deixo aqui o caminho precioso para se chegar à escrita de lara, que é palavra sendo ação poética rara:



 ❂ 

sábado, 1 de junho de 2013

carta



23 de dezembro



t.,


avistei um homem perdido. seus passos sem território eram os meus. penso nos filhos que morrem, a primeira vez, no sangue das mães. o cheiro de hortênsias os cobre e eu o sinto quando eles passam por nós. como em mim. nestes dias em que desconheço para que servem tantas coisas, a lentidão ocupa a mobília e a luz que estende os vitrais pelo interior da casa. faz frio e só as crianças vivem todas as estações querendo ir para fora de suas casas. seguem o terral como a um olho furioso.

  
c.








m
fotografia    aëla labbé
palavras    luciana marinho

domingo, 26 de maio de 2013

uma só terra


quem viveu nessa casa além de nós?
anna akhmatova






desce-me como uma sede
a réstia do que sou, amortecida, fundida em pedra.
dálias ladeiam os vergões do corpo,
as frestas da casa na abertura dos olhos.
há uma voz, funda, que não fala do dia seguinte.
água de minhas mãos
despenhadeiro rodeando
meu pescoço.


fotografia     aëla labbé
palavras     luciana marinho

sábado, 30 de março de 2013




o máquina lírica, afetuosamente, se despede
de seus visitantes, por tempo ainda não preciso.
bastante grata.




fotografia  elena kalis


terça-feira, 26 de março de 2013





a raul macedo







nunca a manhã deixou de ser manhã
como hoje -






- quando teu corpo

(escorrendo
do orvalho)

encheu o cosmos



debruço-me
no cheiro sofrido do nascimento
deixo antúrios na água que desce pela voz
enquanto um menino se curva
ao fundo da luz


o vazio

nas mãos







o vento emudece o pulmão
deita um intruso silêncio entre tua palavra e o meu mundo



e a claridade continua no que não se pode conhecer.




(quarta-feira, 20 de março de 2013)





fotografias    maggie lochtenberg
margaret durow
palavras    luciana marinho
.versos em itálico    décio pignatari

domingo, 3 de março de 2013




era do silêncio
ter os passos que acalmavam as águas,
as camadas de gelo sob as acácias.
ter as crianças que pressentiam o fim,
o recuo das árvores, 
             dos umbrais da primavera.

o que do abismo era íntimo corpo.




luciana marinho
fotografia e palavras

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

do que se vive




a mão dela abriu o orvalho
para que a água descesse uma petúnia nos olhos.
de algum jeito todos envelheceram em suas sombras
foram desaparecendo na morte 
sussurrada à borda dos poços
enquanto ela restava com seu vestido de ventre claro 
e os olhos estendidos ao nevoeiro.
embrulhou suas idades na voz do avô:
"morre-se do que se vive".
e foi desafogando os cardumes do esquecimento.




luciana marinho
  fotografias e palavras

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

triz




o cálice atravessado no ranço da garganta.
t
orpor ardente pesando 60 quilogramas
em 1 metro e 64 centímetros de retração.

ganchos repuxam o coração,
ferem toda vida aérea
e baixam, sobre as cabeças, 
coroas
de escura castidade.
crianças exalam o luto de suas águas,

trincam gritos nos espelhos.
nada mais será legível nas nervuras da mão
nos mapas astrológicos

nas línguas mortas.
serão estranhas e nostálgicas

as cavidades do coração.


fotografia   francesca woodman
palavras   luciana marinho

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