domingo, 30 de dezembro de 2012

reescrita I: águas de clara



 

o mar foi criança para clara.
anêmonas e melros eram rastos da mesma luz,

do ar tomando clara e respirando-a na lucidez das águas.
era no vestido dela que
as pedras marinhas cirandavam
como um cintilar de libélulas.

o mar foi criança para clara
até o instante em que as águas foram vistas em um mapa.

então, arrebataram as barbatanas dos pássaros
arrebataram as asas dos peixes.

conchas se perderam no íntimo quedar das mãos
sobre os corais de luzes.



fotografia    andreas franke
palavras    luciana marinho

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

restante

 
 
 

sobretudo as mãos lânguidas, impermanentes, das águas
refinando o sal na mancha esvaziada do corpo.
magnólia expulsa em parto:
tudo agora está dentro e cai, seiva e ramagens, pela vulva vegetal.
o silêncio se debate
                                   ossos e músculos
perdem seu peso e se encharcam de ar-
fante orfandade.
o sexo corre pelas mãos, das artérias se desprendem rosas.
uma atmosfera de inocência e de carne se rompe
em luz esgotada.



fotografia    elena kalis
palavras    luciana marinho

domingo, 9 de dezembro de 2012

sacrifício





orquidário 
despetala
-se. 

porta 
bate
sem 
força humana. 
animais são curtidos na pedra: 
se 
pudessem 
gemer, gemeriam 
desumanamente 
como 

mandíbula 
aberta 
dos 
crucifixos 
fendendo 
o
s c
or
pos.




fotografias   elena kalis
palavras   luciana marinho

domingo, 18 de novembro de 2012

sua terra




é assombroso tocar os ossos
destilar do sangue os pavores

ocupar a mão com os restos da estrela
suster a terra com os pés cada vez mais reclusos
envergar a luz nos olhos crespos das dracenas

                         acontecer-se onde a água vivida,
                         sanguínea,
                         é recanto para a mão ser sobrevivente corpo.



palavras     luciana marinho
fotografia     tarkovsky

domingo, 16 de setembro de 2012

mercúrio




em nome do pai, do filho, do espírito santo não disseram amém.
a escuridão tinha dentes famintos.
secretos meninos corriam em seus degraus.
a casa era empurrada do oratório pelas mulheres que sangravam seus filhos. gotejavam suas mãos cheias de pólen:
flores quebradas em água
de um vermelho
papoulas escorrem.

pintura      maggie taylor
palavras      luciana marinho

domingo, 2 de setembro de 2012

quase ar

 
 
 
abriu o livro e as vozes vieram.
a terra subiu em cheiro como meninos gravitando.
a casa em desalento, na curva abismal dos dedos,
ergueu-se das palavras.
morriam, em algum canto do corpo, os animais acuados.
árvores vagavam como feridas carregando o sol.
o vinho coagulou a um gole da vida.
 
 
 
fotografia   alison scarpulla
palavras   luciana marinho


domingo, 12 de agosto de 2012

foz



eram mulheres antigas
que iam de encontro ao peito ossudo do vento.
viviam mais do que seus filhos
e os filhos de seus filhos e os filhos dos...
quando a memória se perdia dos homens,
elas nomeavam a ceia, o ocaso, a matilha.
seus passos atravessavam o abcesso do mundo
e suas mãos tremiam ao ar.
águas se exilavam em seus cabelos.
os longos fios se derramavam
em caminhos para todas as casas.







fotografias     alison scarpulla
palavras    luciana marinho

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

hera I




água
enramando os pés.


os passos caem no abcesso do corpo.
mãos morrem ao vento.


 

fotografia    alison scarpulla 
palavras    luciana marinho

domingo, 5 de agosto de 2012

hera II


Navega la vida en una delgada barcaza. El agua circunda el bosque, que bebe y se asoma, sereno. Se abre nuestra mirada, mientras el remo acaricia el agua. Y ellos ya casi no existen. O existen, fundiéndose con el agua...



palavras    índigo horizonte
fotografia    luciana marinho




mais poesia de índigo horizonte
por aqui:

sábado, 28 de julho de 2012

sementeira




ela queria ser plantada ao largo
com um chumaço de nuvem nas sobrancelhas
e ninhos no buraco do peito.
dizia que seu ventre dava para muitas coisas menos para filhos.

ninguém acreditava que era pelo ventre que cuidava dos filhos dos outros,
de seus retratos na escuridão, de suas vozes no ranger das portas,
de seus passos descalços da carne.
a começar pela casa vigiada por cães que atravessavam as paredes
e entravam no sonho de todos, o mistério se sentava à cabeceira da mesa
e tinha uma rosa que nunca envelhecia na lapela.
ela nascera quando as árvores ficaram seres vivos estranhos, de frutos e
flores secos, respiravam pouco e tinham pouca estatura.
enquanto o homem achava cada vez mais sombrio a vida envelhecer,
ela falava das esquecidas sequóias: "120 metros em pé por mais de mil anos!".
ao entardecer, lançava migalhas às beiras da escuridão
e aguardava os pássaros se conservarem acesos.

fotografia   martin stranka
palavras   luciana marinho

terça-feira, 24 de julho de 2012

por aqui e por onde mais

a casa crescerá na direção do vento
assim como se posiciona uma janela para o poente.

 
 

cobria os dentes com cravos e sorria para ninguém.
e ninguém se aproximava de sua lentidão,
de seus olhos inclinados para baixo a coser a escuridão
entre uma linha e outra da mão.

⇁ a escuridão
água enramando seus pés      
   
onde desertos descampavam seus ossos
alojavam pulmão e coração naquele céu ancorado nos pássaros.

fotografia anka zhuravleva
palavras luciana marinho

domingo, 10 de junho de 2012

querência


o peito imóvel como uma ilha pesada de bizâncio e metais de outra natureza. a língua presa a um pântano. como afronta aos pássaros, a retidão é a carne sem ar, intátil e obscura fenda no mundo que entra e sai das incriadas paragens do corpo. em uma querência de flor plantada nas cavidades, lírios crescem nos ossos como contra muros.

o coração é o respiro arfante do vento.


 palavras    luciana marinho
fotografia    lilya corneli

sábado, 19 de maio de 2012

Do ido


desiludo-me nesse porão...quase me sufoco tapando as narinas de deus
fuligens irrigam meu peito amontoado de ossos  estrias  vitrais
boca de céu tombada em suas membranas
amarílis  rosas  dálias maceradas nas entranhas
deixo a alma na largura do morrer do mundo
não sei
do quinhão...das heranças.que me quebram em água
me alastram em terra de ninguém
dessa mão queimada nos dedos
desse barbante em volta do punho para não esquecer
o vento abrindo roseira

fotografia  anka zhuravleva
palavras  luciana marinho

quarta-feira, 9 de maio de 2012

constelar


seu corpo começa em seu olhar. descoroa o amor cegando o ventre. teme o desabrigo do vento. teme os filhos que não têm sido e ocupam suas palavras. corre no território de bichos fascinada com crianças em seu pensamento. remove o que pode sagrá-la no interior das águas. afunda em seus próprios olhos derramando-se em círculos que se abrem horizontes. onde o deserto acaba.

luciana marinho
colagem e palavras

domingo, 29 de abril de 2012

errância

meus pés começam a ver a terra
e eu tenho fome daquela estrela
que de mim é outra vida.
.
luciana marinho


não me deixe rezar por proteção contra os
perigos, mas pelo destemor em enfrentá-los.
não me deixe implorar pelo alívio da dor,
mas pela coragem de vencê-la.
não me deixe procurar aliados na batalha
da vida, mas a minha própria força.
não me deixe suplicar com temor aflito
para ser salvo, mas esperar paciência para
merecer a liberdade.
não me permita ser covarde, sentindo sua
clemência apenas no meu êxito, mas me deixe
sentir a força de sua mão quando eu cair.

rabindranath tagore


fotografia luciana marinho

sexta-feira, 13 de abril de 2012

"Alma Crescendo"


Era uma força oceânica nas manhãs tão cedo, pensou, tocando o olho d’água. As sementes estavam exaustas. Sentiu suor entre os dedos. Pensou em seu medo de não ser abrigo àquela hora em que tudo pode estar por arrebentar. Desmedia o esforço para levar as sementes de um canto a outro dos continentes, habitando o mistério que encadeia os mundos vividos. Um passo em falso dentro das estações poderia preservar o inverno no peito das papoulas. O inverno fazia-o sentar à beira do tempo, prestes a cair no regaço das esferas. Porque o inverno traz um sentimento de orfandade, uma brancura que respinga na íris, um respirar o queimor do frio... As asas se desfazem na retenção do pulmão e renascem no gesto de sobreviver com a terra. Sobreviver com a terra.



fotografias e palavras   luciana marinho

segunda-feira, 2 de abril de 2012

desencanto II


não é o morrer
são pássaros fechando o céu
feridos em sua casa.
são as mãos desaparecidas no livro
a folha de oliveira caindo da página.
não é o morrer
é a árvore dentro do corpo
enraizada fora do mundo.


fotografia  joyce tenneson
palavras   luciana marinho

domingo, 25 de março de 2012

lista para o dia

cobrir-se de ilha
esquecer a mão nos lírios
 respirar as sombras que restam
abrir-se às nuvens antes de nascer
despejar constelações
no ponto cego
cair sem cessar no ventre de coisa nenhuma
voar os pássaros que, carregados de chuva,
pesam no varal.

fotografia  rosângela rennó
palavras  luciana marinho

domingo, 5 de fevereiro de 2012

terceiro elemento


ser a ascensão de uma asa em fogo
como um vulcão no palato.
o que é o palato
senão por onde a alma desliza em sopro?


pintura  vladimir kush
palavras  luciana marinho

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

desertos

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Herberto Helder



Três crianças vivem comigo. A primeira tem um entrançado de silêncio nos cabelos e um vestido que a deixa com frio. A segunda atrai libélulas e outros seres diminutos. Corre juntamente com as folhas quando a terra é levantada pelo vento. A terceira eu nunca vejo bem, porque tem gosto pelo escuro. Elas falam entre si e sabem que descendem da morte e da vida. Existem porque os abismos se rondam e se cruzam. Vejo-as em tempo de chuva, quando se escondem por trás dos móveis e delas escapa luz. Elas brincam com as sombras. Ficam quietas quando ouvem gritos pela casa, o que me fez pensar que talvez entendessem o que eu dizia. Mas não falavam comigo porque não queriam. Depois descobri que não precisam. Meu modo de ser não as interessa. Minhas saídas ao trabalho, o jogo de cartas, os negócios resolvidos no terraço. Nesses momentos, elas dormem ou brincam na cristaleira. Mas quando eu passeio com os cães ou cuido das plantas, elas saltam e somem entre as laranjeiras, brincando com os sentidos e com a natureza. Deixam marcas pela casa, algumas garatujas e redesenhos de mapas. À medida que a presença delas fica mais frequente, começo a perceber que os móveis de minha casa são muito antigos e sem conservação. Os panos cheiram a mofo. Os porta-retratos têm as fotos retiradas. Não há pratos, talheres ou copos sujos em nenhuma hora do dia. Começo a duvidar se meu mundo não é uma lembrança. Grito: vocês me vêem? vocês me vêem? vocês me vêem? A terceira criança sai do escuro e me mostra as raízes minúsculas do sol.


Colagem e Palavras
Luciana Marinho

sábado, 28 de janeiro de 2012

foto-escritura dois: tear ser

abriu as vestes e pôs o rio no tempo
se deserdou
apanhada por uma asa

na água aflita
no movimento longínquo de despontar estrela


palavras  luciana marinho
fotografia  maggie lochtenberg

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

foto-escritura um: à beira do mundo

  
flores de ar frio
margeando o peito,
lago minado.
o tempo escureceu
quando a mão
conteve um lúmen.
os sentidos respingaram orvalho
como lágrimas.
sem cordilheira
sem o colar de horizontes
ficou parada
esquecida de si
esquecida de palavras.

fotografia  b. berenika
palavras  luciana marinho



fui acolhida por uma linda sensibilidade, a poeta marceli becker,
inventora de mundos sem tamanho. é com grata alegria que leio
um texto meu em seu blog de ter de onde se ir, precioso caminho
para se descobrir a intensidade da linguagem de marceli.
por aqui:

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