sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

v e s t í g i o s

e fui cuidar do que restava,
que é sempre o que se deve fazer.
caio fernando abreu





ele se misturou à claridade de meu ventre.
adivinhou confins, o olho mudo, a água.
aqueceu a mão nas nuvens
e me deu um sol crescente nas coronárias.
dormimos desconhecendo ser a última rotação
da lua em torno de nossa casa;
que, inocentes, abriríamos os olhos para os animais
sangrarem com a língua as nossas asas.
redemoinho de miudezas que o vento alastra.
variações do punhal no esgarçado músculo da cara.






fragmento de fotografias de alison scarpulla .
. palavras de luciana marinho
.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

imemorial

reduziu seu corpo à mão ferida lavada em sal.
o sal em que as orquídeas amadurecem.



a ela foi dada essa terra distante: "olhou as nuvens e esperou os objetos se formarem". perdeu de vista as mãos, os pés, a extensão de sua sombra. entregou-se ao desejo de um outro céu e ao silêncio que afasta os estranhos..



colagem e palavras
luciana marinho

domingo, 18 de setembro de 2011

Desencanto

A VIDA ficou dobrada
dentro do livro de cabeceira
como folha sem raiz.
O tempo apagou os meninos
que não puderam crescer
e se espalharam em sótãos e porões
se empoeiraram de luz.
Um horizonte de céus rompidos
destramou as linhas da mão.

.
palavras..luciana marinho
fotografia..
b.berenika

domingo, 4 de setembro de 2011

Passagens

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio à roda de seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
Eugénio de Andrade


Os antigos diziam que do centro de uma árvore se chegava a qualquer lugar. Sem perceber que transportavam essa sabedoria, as crianças desenhavam suas famílias e esconderijos no tronco das árvores mais altas, atraídas pela luz. Das mãos das crianças, assim, surgiam as primeiras árvores genealógicas para dizer do enraizamento humano. Na árvore genealógica, estavam o rumo de tudo e os segredos também. Mas, foram os homens de vista baixa os primeiros a desistir do caminho ascensional das árvores. Desenraizaram os pés da terra, ferindo e consumindo baobás, oliveiras, carvalhos ao fogo. Usaram a luz contra a luz. Peregrinaram sem gravidade, juntamente com seus filhos. Às vezes, algumas crianças sentiam uma nostalgia imensa. O tempo passava por elas como um calafrio. Quiseram ler o que fora apagado dos olhos. Sem perceber, procuraram as inscrições dos ancestrais nos distantes troncos que resistiam. Reconheciam a profunda tristeza das árvores como sua. Sustentavam luminescências contra signos mortos.
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Colagem e Palavras
Luciana Marinho

domingo, 14 de agosto de 2011

"Começar pelo Infinito"

e a dor é de origem divina
cecília meireles
.
prece
.
restitui-me ao tempo
antes que me falte o dia.
dá-me um rio para que eu possa
compreender o que está fora do curso
mas se recosta nas águas.
acrescenta um pomar em minhas mãos
gastas em fumo amargo.
a prece mais profunda é a mim:
sê esvaziada de pedidos.
meus delírios vêm de Ti.

.

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fotografias e palavras
luciana marinho

segunda-feira, 25 de julho de 2011

hieróglifos

segredo-me até as cinzas se confundirem com o poente
a lua inclinar ao colo e arrastar a fadiga da rosa.
o solstício encobre um peito constelado
onde boca não desvenda,
onde pulso não respira?
inverno nos indícios de brasa no sangue.
uma criança cujo corpo é um sopro
repousa uma promessa no músculo de minhas costas:
guiar uma cruzada para ferir o sublime.
sorve-me elíptica,
o suor dos eucaliptos no miolo das flores.
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colagem e palavras
luciana marinho

domingo, 17 de julho de 2011

Interiores

à Eliz e Duda.
.

Paisagem Interior I .

cresceu como um girassol à minha vista
em meio à serração e à tarde num punhado de orvalho
como um rio estendido pelas minhas extremidades
ou um lago me iluminando inteira
no vértice de um astro.
antiga era a mão ao tocar
estrelas enraizadas no semblante das árvores.
antigo respirar com força a terra
até luzir duas asas no diafragma.
tornei a principiar pelo coração.
.
.



Paisagem Interior II . 

iluminar com lírios o encontro dos pés com a terra.
mover-se sobre as pedras de ar
como ser vertido no colo do silêncio.
não ter dentro e fora.
ser a ascensão de uma asa em fogo
como um vulcão no palato.
o que é o palato
senão por onde a alma desliza em sopro?
.


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Paisagem Interior III .

vento abrindo roseiras.
.
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fotografias e palavras

luciana marinho

domingo, 19 de junho de 2011

Pelas Águas de Clara

a cada chama que se extinguia, eu sentia desaparecer em mim
algo muito belo e íntimo que já não haveria de retornar.

hermann hesse, in "demian"
.

Primeiro Ocaso
.

O mar foi criança para Clara.
Peixes e pássaros eram a mesma forma de ser luz,
de o ar habitar Clara e respirá-la na lucidez das águas.
Era no vestido dela que as pedras marinhas cirandavam
como um cintilar de libélulas.
O mar foi criança para Clara
até o instante em que as águas foram vistas num mapa.
Então, arrebataram as barbatanas dos pássaros
arrebataram as asas dos peixes.
Uma geografia desencantada
foi sendo as linhas de suas mãos.

.
.
Segundo Ocaso
.
A vida deixou o mar.
A luz recuou da face dos peixes.
Do corpo, fez-se estrela d'água
na constelação dos tempos.
Conchas se perderam no íntimo quedar das mãos
sobre os corais de luzes.
Asas de pássaros se feriram no ventre.


 
.colagens e palavras
luciana marinho

sexta-feira, 4 de março de 2011

estrelas d'água

(arco de luz...
.
....repousa o Infinito...
.

...corpo de mar)
.

fotografias.. elena kalis
palavras.. luciana marinho

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

entre os dedos de deus

alguém de longe gritava:
"a chuva vem desfiando o céu, recolham os meninos".
mas ela estava à beira do mundo,
miúda numa pétala entre os dedos de deus.
havia no peito a urgência de paisagem:
deixai a infância ser lavada
deixai a infância se voltar para a terra banhada de céu.
.
o vento tremia o lago de seu vestido de peixes
e a aurora ressoava.

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colagem e palavras
luciana marinho

domingo, 30 de janeiro de 2011

esperança branca

essa criança dorme sobre meus lagos de treva.
pensei algumas palavras para oferecer-lhe. esqueço-me
tantas vezes dos mistérios dessa porta.

herberto helder

.o amor atravessa com bela luz
o menino que cria o globo terrestre no papel.
a mata parece nuvens verdes entre oceanos.
a água corre como se o solo chovesse.
traz à vida os animais em extinção, a começar pelo Homo sapiens.
leu em um livro de literatura que o plâncton é um bichinho
que se acende quando faz amor.
achou por bem instituí-lo o rei da natureza.
.
fotografia rosângela rennó
"estado de exceção", 1988
palavras luciana marinho

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

abissais

y es siempre el jardín de lilas del otro lado del río.
si el alma pregunta si queda lejos se le responderá:
del otro lado del río, no éste sino aquél.

alejandra pizarnik

o mergulhar das mãos como barbatanas
e a íris encandeada pelo coração
o silêncio amadurecido pelo sonho
e o verbo desiludido pelo vazio

podemos invadir a água
ondular o grito em sua superfície

invadir o que é submerso e ferido
ficar indistinguíveis
fluentes

respiração ocultada do mundo
.
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fotografia e palavras
luciana marinho
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o mar por aqui
http://boticelli.no.sapo.pt/PraiadeCoral1.htm
.

sábado, 1 de janeiro de 2011

eles escapavam do tempo

a vida é de um encantamento tão delicado
que tudo conspira para quebrá-lo.
emily dickinson

.
Se havia um sol para ser visto
nascia por dentro dela
no tremer de águas ferindo seu ouvido
na sombra atravessada por peixes
acendendo o espírito.
Estava como quem se move em exílio
o rosto sem esquina, sem fronte.
Lâmina no ar tangendo a luz para o fundo.
.
fotografia e palavras
luciana marinho

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