lembra-se das folhas do outono?
dos dias anuviados? eu me lembro.
e se lembra quando você brincava com os cachorros no pátio
de sua infância, enquanto nossa mãe cantarolava uma canção?
não se lembra? eu me lembro.
e se lembra do dia em que havia um monte de gente,
rezando em torno de um féretro, enquanto nossa mãe chorava?
por acaso quem estava no caixão não era nosso pai, o seu e o meu?
não se lembra? eu me lembro.
lembro-me de tudo, desde o primeiro momento em que saí
do ventre de minha mãe até o último momento em que morri.
lembra-se do dia de nossa morte? eu me lembro.
e agora estamos aqui entre todos esses mortos, esperando o juízo final,
afastando os vermes para não devorarem nossa alma.
ainda conserva sua alma ou já a perdeu?
(fragmento de relato constante do livro
O Inquilino do Imaginário)
não importam o esquecimento
os lugares envergados da infância
a paisagem que chega fria e espalhada no nada.
não importa o cálice aberto na boca à espera
de que o céu seja a humilde volta do dedo na borda cortante.
não há passos nas vozes.
nenhum som além do ruir da folhagem nas águas
e de pássaros na vagueza óssea do pensamento.
o suster extenuado das cinzas.
fotografia b. berenika
palavras luciana marinho