quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

desertos

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Herberto Helder



Três crianças vivem comigo. A primeira tem um entrançado de silêncio nos cabelos e um vestido que a deixa com frio. A segunda atrai libélulas e outros seres diminutos. Corre juntamente com as folhas quando a terra é levantada pelo vento. A terceira eu nunca vejo bem, porque tem gosto pelo escuro. Elas falam entre si e sabem que descendem da morte e da vida. Existem porque os abismos se rondam e se cruzam. Vejo-as em tempo de chuva, quando se escondem por trás dos móveis e delas escapa luz. Elas brincam com as sombras. Ficam quietas quando ouvem gritos pela casa, o que me fez pensar que talvez entendessem o que eu dizia. Mas não falavam comigo porque não queriam. Depois descobri que não precisam. Meu modo de ser não as interessa. Minhas saídas ao trabalho, o jogo de cartas, os negócios resolvidos no terraço. Nesses momentos, elas dormem ou brincam na cristaleira. Mas quando eu passeio com os cães ou cuido das plantas, elas saltam e somem entre as laranjeiras, brincando com os sentidos e com a natureza. Deixam marcas pela casa, algumas garatujas e redesenhos de mapas. À medida que a presença delas fica mais frequente, começo a perceber que os móveis de minha casa são muito antigos e sem conservação. Os panos cheiram a mofo. Os porta-retratos têm as fotos retiradas. Não há pratos, talheres ou copos sujos em nenhuma hora do dia. Começo a duvidar se meu mundo não é uma lembrança. Grito: vocês me vêem? vocês me vêem? vocês me vêem? A terceira criança sai do escuro e me mostra as raízes minúsculas do sol.


Colagem e Palavras
Luciana Marinho

8 comentários:

  1. "...os abismos se rondam e se cruzam."

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    1. ...anúncio de terra firme é encontrá-lo por aqui. beijone!

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  2. Tres niños que, entre sombras, te colman. Y una libélula que te alumbra los días... Esta belleza, ¡tanta belleza!, ¿me dejas que la vista de rojos y amarillos? Luego, te escribo, personalmente, mi bella luciérnaga. Cariños y abrazos en añil.

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    1. índigo, querida, não sei por que esse teu comentário estava na caixa de spam, de forma que só o li hoje! e fiquei tocada por tuas palavras. gratíssima! beijo imenso!

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  3. Sim... por vezes o mundo nos parece uma vaga lembrança e a luz de uma vela um majestoso sol!...


    Beijos,
    AL

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  4. bem vindo, AL!

    mundos de (des)encantamento.

    beijos

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  5. a gente lê por vários motivos: para adquirir conhecimento, para se informar, para se comunicar, etc, etc e tal. mas nada melhor quando a gente lê por prazer e com prazer, fundindo todas as utilidades da palavra escrita num encantamento. tua escrita é um encantamento, luciana. sempre saio daqui enfeitiçado por tuas palavras.

    beijo.

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    1. que encanto de comentário, celso :)
      encantemo-nos uns com os outros!

      muito grata por tua presença aqui.

      beijos

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